segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Um velho desafio brasileiro

A importância da reforma agrária para o futuro do país


A má distribuição de terra no Brasil tem razões históricas, e a luta pela reforma agrária envolve aspectos econômicos, políticos e sociais. A questão fundiária atinge os interesses de um quarto da população brasileira que tira seu sustento do campo, entre grandes e pequenos agricultores, pecuaristas, trabalhadores rurais e os sem-terra. Montar uma nova estrutura fundiária que seja socialmente justa e economicamente viável é dos maiores desafios do Brasil. Na opinião de alguns estudiosos, a questão agrária está para a República assim como a escravidão estava para a Monarquia. De certa forma, o país se libertou quando tornou livre os escravos. Quando não precisar mais discutir a propriedade da terra, terá alcançado nova libertação.
Com seu privilégio territorial, o Brasil jamais deveria ter o campo conflagrado. Existem mais de 371 milhões de hectares prontos para a agricultura no país, uma área enorme, que equivale aos territórios de Argentina, França, Alemanha e Uruguai somados. Mas só uma porção relativamente pequena dessa terra tem algum tipo de plantação. Cerca da metade destina-se à criação de gado. O que sobra é o que os especialistas chamam de terra ociosa. Nela não se produz 1 litro de leite, uma saca de soja, 1 quilo de batata ou um cacho de uva. Por trás de tanta terra à toa esconde-se outro problema agrário brasileiro. Até a década passada, quase metade da terra cultivável ainda estava nas mãos de 1% dos fazendeiros, enquanto uma parcela ínfima, menos de 3%, pertencia a 3,1 milhões de produtores rurais.


"O problema agrário no país está na concentração de terra, uma das mais altas do mundo, e no latifúndio que nada produz", afirma o professor José Vicente Tavares dos Santos, pró-reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em comparação com os vizinhos latino-americanos, o Brasil é um campeão em concentração de terra. Não sai da liderança nem se comparado com países onde a questão é explosiva, como Índia ou Paquistão. Juntando tanta terra na mão de poucos e vastas extensões improdutivas, o Brasil montou o cenário próprio para atear fogo ao campo. É aí que nascem os conflitos, que nos últimos vinte anos fizeram centenas de mortos.
O problema agrário brasileiro começou em 1850, quando acabou o tráfico de escravos e o Império, sob pressão dos fazendeiros, resolveu mudar o regime de propriedade. Até então, ocupava-se a terra e pedia-se ao imperador um título de posse. Dali em diante, com a ameaça de os escravos virarem proprietários rurais, deixando de se constituir num quintal de mão-de-obra quase gratuita, o regime passou a ser o da compra, e não mais de posse."Enquanto o trabalho era escravo, a terra era livre. Quando o trabalho ficou livre, a terra virou escrava", diz o professor José de Souza Martins, da Universidade de São Paulo. Na época, os Estados Unidos também discutiam a propriedade da terra. Só que fizeram exatamente o inverso. Em vez de impedir o acesso à terra, abriram o oeste do país para quem quisesse ocupá-lo - só ficavam excluídos os senhores de escravos do sul. Assim, criou-se uma potência agrícola, um mercado consumidor e uma cultura mais democrática, pois fundada numa sociedade de milhões de proprietários.


Com pequenas variações, em países da Europa, Ásia e América do Norte impera a propriedade familiar, aquela em que pais e filhos pegam na enxada de sol a sol e raramente usam assalariados. Sua produção é suficiente para o sustento da família e o que sobra, em geral, é vendido para uma grande empresa agrícola comprometida com a compra dos seus produtos. No Brasil, o que há de mais parecido com isso são os produtores de uva do Rio Grande do Sul, que vendem sua produção para as vinícolas do norte do Estado. Em Santa Catarina, os aviários são de pequenos proprietários. Têm o suficiente para sustentar a família e vendem sua produção para grandes empresas, como Perdigão e Sadia. As pequenas propriedades são tão produtivas que, no Brasil todo, boa parte dos alimentos vêm dessa gente que possui até 10 hectares de terra. Dos donos de mais de 1.000 hectares, sai uma parte relativamente pequena do que se come. Ou seja: eles produzem menos, embora tenham 100 vezes mais terra.


Ainda que os pequenos proprietários não conseguissem produzir para o mercado, mas apenas o suficiente para seu sustento, já seria uma saída pelo menos para a miséria urbana. "Até ser um Jeca Tatu é melhor do que viver na favela", diz o professor Martins. Além disso, os assentamentos podem ser uma solução para a tremenda migração que existe no país. Qualquer fluxo migratório tem, por trás, um problema agrário. Há os mais evidentes, como os gaúchos que foram para Rondônia na década de 70 ou os nordestinos que buscam emprego em São Paulo. Há os mais invisíveis, como no interior paulista, na região de Ribeirão Preto, a chamada Califórnia brasileira, onde 50.000 bóias-frias trabalham no corte de cana das usinas de álcool e açúçar durante nove meses. Nos outros três meses, voltam para a sua região de origem - a maioria vem do paupérrimo Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais.
A política de assentamento não é uma alternativa barata. O governo gasta até 30.000 reais com cada família que ganha um pedaço de terra. A criação de um emprego no comércio custa 40.000 reais. Na indústria, 80.000. Só que esses gastos são da iniciativa privada, enquanto, no campo, teriam de vir do governo. É investimento estatal puro, mesmo que o retorno, no caso, seja alto. De cada 30.000 reais investidos, estima-se que 23.000 voltem a seus cofres após alguns anos, na forma de impostos e mesmo de pagamentos de empréstimos adiantados. Para promover a reforma agrária em larga escala, é preciso dinheiro que não acaba mais. Seria errado, contudo, em nome da impossibilidade de fazer o máximo, recusar-se a fazer até o mínimo. O preço dessa recusa está aí, à vista de todos: a urbanização selvagem, a criminalidade em alta, a degradação das grandes cidades.


Perguntas & respostas

  • Por que o Brasil, que tem terra de sobra, ainda vive problemas no campo?Existem duas visões conflitantes a respeito da agricultura brasileira. Segundo a mais antiga, o Brasil tem terras tão esplêndidas e vastas que poderia ser o celeiro do mundo. A outra é baseada na observação prática de quem viaja pelo país. Fora algumas regiões do centro e do sudeste, que têm lavouras vistosas, uma boa parte do terreno brasileiro é formada por matagal inaproveitado. Ou por roçados em que a família cria bode, galinha e planta inhame para comer no casebre. Nessa paisagem há também o latifúndio improdutivo, dominado pelo coronel que prefere mexer com política a plantar alguma coisa. É a essa combinação de terras férteis, mas ociosas, que se dá o nome de problema agrário brasileiro. Esse problema, temperado por surtos de agitação rural, é muito discutido, tema de análises acadêmicas e de discursos inflamados no Congresso. Fala-se demais sobre a terra brasileira e pouco se faz. Muitos números indicam que o Brasil pode ser mesmo um dos celeiros mundiais, mas o fato é que o país nunca teve uma política agrária global, digna desse nome. Nas áreas em que se planta com técnicas modernas, a agricultura brasileira é altamente produtiva, quase tanto quanto a européia ou a americana. Mas na maior parte do Brasil planta-se ao acaso. Se der certo, deu. E geralmente não dá - porque não há planejamento, dinheiro, técnica, tradição.   
  • Por que a reforma agrária no país dificilmente produz resultados significativos?A operação de desapropriar fazendas improdutivas e alojar trabalhadores sem terra não é difícil de tocar. Com um laudo do Incra e um rabisco do ministro da Reforma Agrária, aparecerão lotes em boa quantidade. Em termos práticos, isso adianta pouco. O sem-terra, com o seu lote, continuará sem estrada, sem irrigação, sem semente, sem renda. É difícil imaginar alguma razão pela qual ele se fixaria nessa gleba por muito tempo. Assim, a política de desapropriação e assentamento parece fadada ao fracasso se não vier acompanhada de medidas de apoio, como oferta de crédito barato ao produtor e construção de infra-estrutura para sua produção. 
  • Se os assentamentos têm tantos problemas, por que tanta gente continua aguardando na fila para integrar um deles?De acordo com um censo realizado pelo Incra, 70% dos assentados já trabalhavam em alguma atividade rural - o que derruba o mito de que grande parte dos assentados vivia antes nas cidades. É dura a vida nos assentamentos. A maioria vive em casas de madeira ou taipa, ilumina suas noites à base de lampiões de querosene e há uns poucos felizardos que desfrutam o luxo da água encanada. A maior parte não tem nem posto de saúde por perto, muito menos hospital. Mas, apesar da aspereza da vida e da alta taxa de desistência, mais de 60% dos assentados não pensam em ir embora. Há sinais de que a maioria não deixa a terra porque a sua vida, ainda que precária, está melhor que antes, e sua renda familiar média a coloca com um padrão bem acima dos milhões de brasileiros oficialmente considerados miseráveis.
  • Se há tantas dificuldades para o governo bancar a reforma, por que vale a pena promovê-la?Até a década de 60, distribuir terras garantia um aumento na produção agrícola dos países. Depois, com o aumento da produtividade, garantiu-se o abastecimento não pela repartição da terra, e sim pelo uso da tecnologia. A necessidade de mão-de-obra no setor vem caindo, aumentando diretamente a legião dos sem-terra. O Brasil tinha mais da metade de sua força de trabalho no campo até a década de 60. Hoje tem 23%. A Europa mantém aproximadamente 6% de sua população trabalhando no meio rural e, nos Estados Unidos, a porcentagem cai para 2%. De um ponto de vista estritamente agrícola, portanto, a reforma agrária não tem mais nenhuma razão de ser. No Brasil, ela se transformou numa questão diferente, pelo menos na teoria: evitar que as metrópoles sejam inchadas por desempregados do campo e também funciona na esfera da justiça social ao conceder terra a quem precisa dela para tirar o sustento da família.
  • Se o país bancou centenas de milhares de assentamentos nos últimos anos, por que o MST mantém sua estratégia agressiva para pressionar as autoridades?Pela agressividade e amplitude das manifestações, seria razoável supor que o MST vive um momento de profunda angústia e que o programa de reforma agrária vai muito mal no Brasil. Mas nas duas décadas contadas desde que foi iniciado o programa, nos anos 80, foram distribuídos 22 milhões de hectares de terra a 618.000 famílias. Essa área equivale à soma de quatro países europeus: Áustria, Bélgica, Holanda e Portugal. Quanto mais terra o governo distribui, mais irritada fica a cúpula do movimento, porque, diante de números como esses, o discurso do MST se fragiliza. Numa palavra, o MST não quer mais terra. O movimento quer toda a terra: quer tomar o poder no país por meio da revolução e, feito isso, implantar por aqui um socialismo tardio. É o próprio MST que diz isso - e sem constrangimento algum.









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